Recentemente,
Grécia e Itália foram palco de uma encenação política que levou muita gente (eu
incluído) a proclamar, com veemente indignação, aqui d’el rei que se tratava de
uma tragédia à moda antiga, digna de um Ésquilo ou de Lívio Andronico. Em
questão estava a substituição do primeiro-ministro Papandreu e do seu homónimo
Berlusconi, eleitos por sufrágio popular, por Papademos e Monti, ambos
tecnocratas de ofício e eurocratas convictos. A tragédia tinha um título – O
crepúsculo da democracia.
Porque a emoção é inimiga da
reflexão, é proveitoso não nos deixarmos manipular pelo efeito comovente dos
discursos (pathos) e, serenamente,
sopesarmos os argumentos e decidirmo-nos por aqueles cuja força nos convença
por maioria de razão.
Foi
Platão quem primeiro se debruçou sobre o assunto da melhor forma de governar.
Curiosamente, da sua crítica à democracia podemos extrair o filão argumentativo
que suporta a decisão de substituir políticos eleitos democraticamente por
tecnocratas. Resumidamente, a argumentação platónica traduz-se no seguinte: se
estivermos doentes e pretendermos curar-nos, confiamos no médico e não no voto
da populaça a escolha do remédio eficaz; a ninguém lembraria confiar à
assembleia de passageiros de um navio a arte de navegar em mar alto, tendo ali
à mão a competência do comandante para impedir o naufrágio iminente;
analogamente, só a cegueira mental justifica que entreguemos a uma turba de
palradores ignorantes as decisões políticas. Por consequência, o poder de guiar
a nau do estado deve ser dado àqueles que detêm o saber técnico para o efeito.
Aqui deparamo-nos com o significado da palavra tecnocratas.
À distância de vinte e quatro
séculos, podemos ser tentados a subtrair créditos ao argumento de Platão, a
desmerecê-lo mesmo, em razão das inclinações do filósofo por um género de
tirania esclarecida, hoje por hoje desconsiderada à luz da mundividência
ocidental. No entanto, os méritos da democracia, em tempos de incerteza e de
angústia colectivas, correm o risco de ser depreciados por populações ansiosas
à espera de um homem providencial e de retórica eficaz.
Se
pretendemos acautelar o futuro da democracia não basta cantar loas às suas
virtudes inquestionáveis, ou, como afirma Fareed Zakaria “não é felicitando-nos por viver em democracia que resolvemos os nossos
problemas.” (O Futuro da liberdade, Gradiva). É necessário levar a sério o
argumento de Platão e darmo-nos ao trabalho de desconstruir os seus
fundamentos. E porque não aproveitá-lo para refundar os alicerces da
democracia? É esse o objectivo do reputado jornalista e editor da Newsweek International, ex-professor de
filosofia política em Harvard. “Actualmente
o que temos necessidade em política, é de menos democracia, não de mais. Com
isto não quero dizer que devemos apoiar autocratas ou ditadores, mas antes
devemos interrogar-nos por que razão algumas instituições (…) funcionam mal.”
Defende Zakaria que a solução para a uma democracia disfuncional é dotá-la de
mecanismos de delegação, que permite que determinadas decisões não fiquem
reféns de uma desregulação democrática, que é o que acontece quando os
políticos decidem em função de interesses corporativos, sendo permeáveis ao
nepotismo, aos favorecimentos, aos lobbies e à pressão eleitoralista. “O maior perigo de uma democracia sem
entraves e disfuncional é que ela desacredite o sistema democrático em si,
projectando uma sombra sobre toda e qualquer governação popular.” Delegar
decisões e autoridade a instituições de reconhecida competência, sempre sob o
controlo do Parlamento, é uma solução que retira ao argumento de Platão a dose
de persuasão que, em tempos de crise democrática, lhe pode ser atribuída.
Afirmou um dia John
Dewey: “O remédio para os males da
democracia, é mais democracia”. Ao que me atrevo a acrescentar: sobretudo
melhor democracia.
José M.
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