terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Arturinho e os alemães

O convite para almoçar partira do Arturinho, o presidente da câmara, que António conhecia de ouvir falar ao pai, recentemente falecido, e de palavras trocadas em encontros ocasionais, sempre concluídas com um cumprimento de mão acalorado e recomendações “à senhora sua mãe e ao senhor engenheiro”.
O almoço era inevitável. A câmara tomara posse administrativa de um largo talhão de uma tapada da família, destinado a uma nova avenida central na vila, para o qual estipulara um pagamento pouco mais do que simbólico. A faixa abrangia, ainda, sete parcelas  reservadas para a construção de outros tantos edifícios,  a pagar ao mesmo preço, os quais passariam a constituir, uma vez erguidos, uma muralha no acesso mais directo à propriedade.
Passados vários meses sem resposta à carta em que a família  recusou os valores adiantados, que se dispunha a trocar por dois lotes e um acesso, e iniciadas as obras, António telefonou ao presidente que, de imediato, o convidou a vir de Lisboa à vila para almoçarem.
No único restaurante recente, em sala recatada e mesa usual, a conversa saltitou e alongou-se, a propósito das recentes eleições, das novidades locais, do ano agrícola e dos méritos de conhecidos comuns. Alguns comensais abeiraram-se para dar uma palavrinha e dois saíram saboreando o gosto dos despachos favoráveis e expeditos: “fale com o senhor Robalo, da secretaria, e diga-lhe o que ficou combinado”.
O assunto da expropriação ficou para tratar em gabinete presidencial. Perante as plantas desdobradas, a conversa resumiu-se a uma declaração de princípio: a Câmara não concebia a possibilidade da existência de qualquer contencioso com a família de António, de tal modo era estimada de há muitas gerações a esta parte, pelo exemplo de rectidão e  pelo que havia feito a favor do concelho e dos conterrâneos.
Enveredar por qualquer conflito estava fora de questão, não só por razões óbvias mas igualmente por motivos pessoais, que, aliás, convergiriam. O presidente, para quem a ordem do mundo, ainda repousava no estatuto e na linhagem dos notáveis, não podia esquecer, algum dia, as palavras de consideração que seus pais e tios dedicaram  aos familiares de António.
Era certo que se tinha afastado, ainda novo, do concelho, estudado num colégio da Foz, no Porto, embora sem grande sucesso, e vivido em África sem brilho especial, mas tal não o afastara das raízes.
O percurso da sua vida era de todos sabido e, com regularidade, reavivado pelo próprio: regressado de África, o menino Arturinho, como ainda era tratado na aldeia, ou o Arturinho, para todos os efeitos no concelho, sentiu a necessidade de meter empenhos para obter uma situação na vida condigna e os conhecidos influentes em Lisboa, a quem entreposto amigo falara, convergiram para que fosse nomeado presidente da câmara. Pouco depois, casou com uma prima em segundo grau e não teve filhos. Alcançados estes dois arrumos, o novel presidente teve uma vida pacata, feita da gestão de interesses tão acomodados quanto consolidados, sacudida unicamente pela recepção de algum ministro e pela etapa local da Volta a Portugal.  O pior aconteceu quando recebeu o próprio Presidente Thomaz e de tanta vénia e beija-mão não só  caiu do palanque como viu ossos das duas breves pernas fracturados.  Mudado o regime e após alguns anos de retiro no Porto, o Arturinho não deixou de viver os momentos de glória democrática. O Partido Socialista foi buscá-lo para candidato e ganhou – como independente e de acordo com congeminações institucionais muito pessoais que tinha por apolíticas – os três sufrágios a que se apresentou.
Não era, pois, a sossegada vida corrente do município, que conhecia de cor, muito menos qualquer indemnização, que se resolveria com dois dedos de conversa ou com algumas diligências correntes, que o trazia invulgarmente preocupado e fazia sentir a necessidade de desabafar.
O problema, melindroso e sem solução à vista era a reunião com os alemães, que haviam anunciado, de surpresa, a sua chegada para breve.
            A história que conseguira tirar-lhe o sono conta-se em duas palavras: a câmara concorrera e obtivera fundos teutónicos para proceder ao saneamento e à distribuição de água, com a construção de um novo depósito, em aldeia avantajada, mas só iniciara vagamente as obras, apesar de ter recebido todas as prestações previstas no calendário de execução.
Inopinadamente, sem que estivesse previsto ou houvesse antecedentes conhecidos, os beneméritos tinham escrito a dizer que vinham, no próximo mês, verificar a boa execução e a conclusão do projecto. Como lhes explicar que tinham surgido outras prioridades, a reparação de caminhos e pontes, e que o dinheiro recebido fora utilizado para as satisfazer, sem, porém, comprometer a execução do contratado quando houvesse condições para o fazer? Por quem se tomavam esses desconhecidos para duvidar do combinado? Como os receber, se a diferença de língua e a presença de tradutores iriam impedir que se estivesse à-vontade para conversar?
Os alemães eram o problema. Já quanto à indemnização pelo terreno expropriado, rematou, quando o sr. Robalo se veio despedir, estava fora de questão qualquer desentendimento aborrecido, pelo que o melhor era António falar com a família, pois esta entenderia que as obras da nova avenida eram caras e Câmara não podia pagar mais do que propusera.
Ao atravessar o largo da feira, depois de recusar um último convite para lanchar e feitas as despedidas, ocorreu a António, ao rememorar a conversa, que o candidato social-democrata e sportinguista que fazia frente ao Arturinho, dono de uma empresa de viação, tinha no estado dos caminhos a bandeira eleitoral mais querida.
Foi, então que, por um momento e antes de começar a meditar na conversa a ter com o advogado, se interrogou: “os alemães não chegarão demasiado tarde?”

Luís A.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Dos governantes e dos governados


Há algo de estranho neste muito nosso modo de ser. Exigimos aos governantes aquilo que não exigimos a nós próprios. Fugimos aos impostos, não respeitamos as mais elementares regras de civismo (o que se passa nas estradas portuguesas é uma vergonha nacional. O comportamento dos portugueses ao volante é um espelho do que somos). Clamamos que os políticos não querem saber de nós e pouco nos importamos com o vizinho do lado. Bradamos que os políticos só querem encher os bolsos e se a oportunidade surgir fazemos exactamente o mesmo. Vociferamos contra as negociatas da política e reverenciamos a cunha e o chico-espertismo. Praguejamos contra a classe política por nada fazer e ficamos sentados à espera que alguém faça por nós. Satirizamos a falta de compaixão de quem manda e veneramos o queixume egoísta. Consideramos que temos sempre razão e conhecemos muito bem a causa de todos os problemas. Temos opinião sobre tudo e julgamos com a maior facilidade, sabendo, à partida, que fulano de tal é culpado porque sim.
Os políticos que temos, gostemos ou não deles, são somente o reflexo generalizado deste estranho modo de ser. Exigimos aos políticos virtudes que obliteramos no nosso dia-a-dia. A principal causa da nossa decadência é moral, o resto vem por arrasto.

João M

domingo, 27 de novembro de 2011

Da democracia e da crítica que Platão lhe moveu

Recentemente, Grécia e Itália foram palco de uma encenação política que levou muita gente (eu incluído) a proclamar, com veemente indignação, aqui d’el rei que se tratava de uma tragédia à moda antiga, digna de um Ésquilo ou de Lívio Andronico. Em questão estava a substituição do primeiro-ministro Papandreu e do seu homónimo Berlusconi, eleitos por sufrágio popular, por Papademos e Monti, ambos tecnocratas de ofício e eurocratas convictos. A tragédia tinha um título – O crepúsculo da democracia.
            Porque a emoção é inimiga da reflexão, é proveitoso não nos deixarmos manipular pelo efeito comovente dos discursos (pathos) e, serenamente, sopesarmos os argumentos e decidirmo-nos por aqueles cuja força nos convença por maioria de razão.
            Foi Platão quem primeiro se debruçou sobre o assunto da melhor forma de governar. Curiosamente, da sua crítica à democracia podemos extrair o filão argumentativo que suporta a decisão de substituir políticos eleitos democraticamente por tecnocratas. Resumidamente, a argumentação platónica traduz-se no seguinte: se estivermos doentes e pretendermos curar-nos, confiamos no médico e não no voto da populaça a escolha do remédio eficaz; a ninguém lembraria confiar à assembleia de passageiros de um navio a arte de navegar em mar alto, tendo ali à mão a competência do comandante para impedir o naufrágio iminente; analogamente, só a cegueira mental justifica que entreguemos a uma turba de palradores ignorantes as decisões políticas. Por consequência, o poder de guiar a nau do estado deve ser dado àqueles que detêm o saber técnico para o efeito. Aqui deparamo-nos com o significado da palavra tecnocratas.
            À distância de vinte e quatro séculos, podemos ser tentados a subtrair créditos ao argumento de Platão, a desmerecê-lo mesmo, em razão das inclinações do filósofo por um género de tirania esclarecida, hoje por hoje desconsiderada à luz da mundividência ocidental. No entanto, os méritos da democracia, em tempos de incerteza e de angústia colectivas, correm o risco de ser depreciados por populações ansiosas à espera de um homem providencial e de retórica eficaz.
Se pretendemos acautelar o futuro da democracia não basta cantar loas às suas virtudes inquestionáveis, ou, como afirma Fareed Zakaria “não é felicitando-nos por viver em democracia que resolvemos os nossos problemas.” (O Futuro da liberdade, Gradiva). É necessário levar a sério o argumento de Platão e darmo-nos ao trabalho de desconstruir os seus fundamentos. E porque não aproveitá-lo para refundar os alicerces da democracia? É esse o objectivo do reputado jornalista e editor da Newsweek International, ex-professor de filosofia política em Harvard. “Actualmente o que temos necessidade em política, é de menos democracia, não de mais. Com isto não quero dizer que devemos apoiar autocratas ou ditadores, mas antes devemos interrogar-nos por que razão algumas instituições (…) funcionam mal.” Defende Zakaria que a solução para a uma democracia disfuncional é dotá-la de mecanismos de delegação, que permite que determinadas decisões não fiquem reféns de uma desregulação democrática, que é o que acontece quando os políticos decidem em função de interesses corporativos, sendo permeáveis ao nepotismo, aos favorecimentos, aos lobbies e à pressão eleitoralista. “O maior perigo de uma democracia sem entraves e disfuncional é que ela desacredite o sistema democrático em si, projectando uma sombra sobre toda e qualquer governação popular.” Delegar decisões e autoridade a instituições de reconhecida competência, sempre sob o controlo do Parlamento, é uma solução que retira ao argumento de Platão a dose de persuasão que, em tempos de crise democrática, lhe pode ser atribuída.      
             Afirmou um dia John Dewey: “O remédio para os males da democracia, é mais democracia”. Ao que me atrevo a acrescentar: sobretudo melhor democracia.  

José M.

Regresso ao passado



É este o futuro?

João M

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Olhares do quotidiano

A irmandade do cigarro

                 Esgotado por uma incursão natalícia a um centro comercial, esgueirei-me, entre compras, para um descansado cigarro. Resmungando pensamentos saturados de lojas, compras e saldos, dirigi-me a um desses espaços para onde os fumadores são empurrados, de modo a espiarem o seu pecado e a manterem limpa a azáfama consumista. Enquanto fumava, procurando um momento de sossego, acercou-se um homem de 50 anos de vida cansada e amarrotada. Pediu licença e, num olhar cabisbaixo, iniciou a colheita das beatas plantadas no cinzeiro, escolhendo-as num cuidado de filigrana. Ofereci-lhe um cigarro e do seu rosto de olhos e barba saiu um obrigado fraterno que só os fumadores compreendem. Afastou-se num caminhar lento e curvado, respigando outros cinzeiros repletos de cigarros apressados.
                Saúde, irmão!
João M

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O caminho da natureza ou o caminho da graça?


Acabado de sair em DVD, o último filme de Terrence Malick é um assombro cinematográfico que vale a pena ver ou rever. O estilo cinematográfico de Malick, construído em imagens poeticamente esculpidas, convoca-nos para uma reflexão que é, cada vez mais, pautada pelo indizível mistério que somos.
Há uma beleza no cinema de Malick que é, ao mesmo tempo, quietude e desassossego. Sublime!


 

João M

domingo, 20 de novembro de 2011

Portugal ou o canil da Europa

Com a certeza de que quem nos governa não mora neste recanto de angústias a que chamamos Portugal, li a entrevista que Poul Thomsen deu ao Expresso (19/11/2011). Todas as minhas suspeitas se viram confirmadas, preto no branco. Mas também tive surpresas. A ilustre personagem, que tem por missão resgatar a economia portuguesa do ciclo vicioso em que caiu (espiral de deficit e desequilíbrio das contas) e conduzir-nos para o caminho da virtude, mostra ter tantas certezas quanto o cidadão comum depois de ter feito exames médicos para saber qual a estirpe do cancro que lhe foi diagnosticado: “Depende da economia”, “Penso que é possível”, “Vamos ver como a economia responde”, “Se voltarmos e virmos a economia a afundar-se mais do que o previsto (…) então poderemos reconsiderar”, “Acredito que é possível se as reformas forem feitas”. Para navegar neste mar de incertezas era preciso mais do que uma bússola avariada.
A propósito da anunciada austeridade e da percentagem expectável da queda da economia para 2012 (3, 4, 5 por cento?) a resposta do senhor FMI, como alguma comunicação social gosta de lhe chamar, merece pontificar nos anais dessa ciência a que chamamos economia: “Esperemos não chegar a esse ponto. Queremos evitar ser um cão a correr atrás da própria cauda, no sentido em que uma economia mais fraca precisa de mais austeridade, o que por sua vez agrava a recessão, etc.” A imagem não podia ser mais certeira. Não é preciso ser-se um expert em psicologia canina para saber que esse comportamento obsessivo resulta de acumulação não de capital mas de stress, frustração e ausência de estímulos causados pela falta de liberdade. Temo que em breve Portugal se venha a transformar-se num canil para animais doentes por falta desse estímulo apelidado liberdade. Talvez este país tenha futuro como canil da Europa. 


José M.

Anotações nas margens do texto “Da democracia”



O texto anteriormente publicado – Da democracia – tem a virtude singular de nos convidar para a tarefa do pensar. Não apenas pelo seu horizonte de problematização, que aponta para a clareira de respostas onde não há lugar para o lugar-comum, mas sobretudo pelo que sugere em termos da weltanschauung que ameaça reconfigurar o modo como nos organizamos politicamente em comunidade.
Concentremo-nos no argumento que suporta o texto. A fragilidade da democracia (a outra face do seu declínio) resulta do abandono do seu cultivo e do esquecimento das suas origens, abandono que se traduz no afastamento da sua matriz ética e no esquecimento dos seus valores originários. À medida que se afasta e esquece o seu “ethos” primitivo, a sua legitimidade (a da soberania expressa pela vontade do povo) é questionada e, consequentemente, substituída pela soberania dos mercados. Este é o sinal dos tempos e dos perigos que se avizinham.
O tom heideggeriano do texto sugere que avancemos uns passos adiante. Deixemo-nos então iluminar pelas questões. Qual o significado da (quase) ausência de questionamento da legitimidade do poder dos mercados financeiros? Não se traduzirá no esquecimento do político e na sobrevalorização do económico? A história desta transformação, em curso nos últimos trinta anos na Europa, está em parte ainda por fazer. Trata-se, no entanto, de um fenómeno que acompanha o ritmo da globalização económica e do desmantelamento da forma política chamada estado-nação.
Ao projecto de construção de um império económico europeu subjaz o ideal de um império democrático de natureza transnacional, a culminar na concretização de uma utopia – os Estados Unidos da Europa. Em consequência, assistimos a um deslocamento do poder. À semelhança do capital globalizado, sem rosto nem fronteiras, o poder desloca-se das mãos do povo para as manápulas dos representantes da nova ordem mundial a que chamamos mercados. Como diz Pierre Manent: “A versão europeia do império democrático assinala-se pela radicalidade com a qual ela destaca a democracia de qualquer povo real e constrói um kratos sem demos. O que doravante detém o kratos é, em suma, a Ideia de democracia.” (A razão das Nações, Reflexões sobre a democracia na Europa, Ed. 70 ) Refém dos mercados, a democracia transforma-se em tecnocracia financeira, em resultado da usurpação do poder popular por parte dos representantes dos interesses da alta finança, ao mesmo tempo que se esvazia de sentido e vê os cidadãos virarem-lhe as costas e votá-la ao esquecimento.  
Da democracia real, feita por cidadãos e para os cidadãos, resta-nos cada vez mais a sua ideia, que historicamente teve um espaço próprio de concretização e de legitimação – os estado-nação. Não será o esquecimento disto que nos conduz à constatação de que vivemos na época de todos os perigos?
José M.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Da democracia

A democracia é a mais frágil forma dos regimes políticos. Tratada com desleixo, facilmente entra em declínio e dará lugar a formas de governo autocráticas. A recente queda de Silvio Berlusconi levanta, paradoxalmente, um problema para a democracia que urge reflectir. Quero deixar bem claro que não nutro qualquer simpatia pela figura do ex-primeiro-ministro italiano, mas considero extremamente perigoso que os mercados consigam aquilo que a ética e os valores fundamentais da democracia não conseguiram. Berlusconi resistiu a diversos escândalos, passando por eles de um modo quase incólume, do ponto de vista político. Não resistiu, porém, à pressão dos mercados. Um a um, vemos governantes eleitos de modo democrático a caírem perante as exigências financeiras. Sócrates, Papandreou, Berlusconi são nomes de uma lista a que brevemente outros se juntarão. Independentemente das ideias, dos projectos ou dos valores apresentados ao eleitorado, é o poder financeiro que, em última instância, acaba por determinar os destinos de um país. A legitimidade democrática, expressa no sufrágio universal, está a ser gradualmente substituída pela vontade das praças financeiras, o que levanta um sério problema político. Se a vontade dos povos deixa de ser soberana, o que vai legitimar as decisões de um governo? Estando a legitimidade democrática afastada, qual o fundamento que legitima o exercício do poder? Como enquadrar a contestação, por mais violenta que se seja, se o pacto fundamental foi quebrado?
Estará a democracia irremediavelmente condenada a sucumbir perante este Zeitgeist? Vivemos na época de todos os perigos.

João M

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Impressões de leitura - Tony Judt

Tony Judt morreu o ano passado, vítima de uma doença degenerativa – esclerose lateral amiotrópica. A doença, diagnosticada em 2008, não lhe deixava margens para prognósticos esperançosos. A curto prazo, ficaria reduzido a um estado de mobilidade mínima do pescoço para cima. Daí para baixo, sem ajuda de terceiros, a imobilidade seria absoluta. Fisicamente prisioneiro de um corpo inabilitado, restar-lhe-ia uma mente livre para reflectir sobre acontecimentos e situações que a memória armazenou e lhos devolveria então, na penumbra nocturna, nítidos e em sequências narrativas concluídas. “Já doente há uns meses, percebi que, durante a noite, escrevia histórias completas durante a noite.” (O chalet da memória) Foi já nesse estado neurovegetativo avançado que escreveu dois belos livros: Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos e O chalet da memória, ambos publicados em 2010 (em Abril e Outubro de 2011 em língua portuguesa, pelas edições 70). São livros diferentes, arquitectados a partir de distintos pontos de vista. Mais intimista este, aquele mais didáctico. Percebe-se, ao lê-los, que o propósito de um e de outro divergem. Enquanto o primeiro tem uma natureza ensaística, o segundo reveste-se de um carácter testemunhal. No entanto, o pano de fundo permanece o mesmo: as mudanças sociais e políticas que ocorreram no mundo ocidental ao longo do século XX.
É sobre os acontecimentos deste último século que interessa reflectir, antes que nos deixemos conduzir pelos perigosos caminhos da “servidão voluntária” que nos querem impor os novos arautos da ideologia da inevitabilidade. “Acima de tudo, a servidão em que uma ideologia mantém a sua gente mede-se melhor pela sua incapacidade colectiva para imaginar alternativas. Sabemos muito bem que a fé ilimitada nos mercados desregulados mata: a aplicação estrita do que até há pouco tempo, em países em desenvolvimento vulneráveis, se chamava ‘o consenso de Washington – que punha a sua tónica numa política fiscal rigorosa, privatizações, tarifas baixas e desregulamentação – destruiu milhões de meios de subsistência. Entretanto, os ‘termos comerciais’ rígidos em que estes remédios são disponibilizados reduziram drasticamente a esperança de vida em muitos locais. Mas, na expressão letal de Margaret Thatcher, ‘não há alternativa’.” (O chalet da memória)
Se há característica predominante capaz de definir significativamente esta nossa época de modernidade globalizada, é o esquecimento do passado, logo abandonado e esquecido. Para além deste esquecimento, somos prisioneiros de um presente tecido com os fios da frágil imediatez e de um futuro incerto que nos devolve o medo de existir. A conjugação destes factores coloca-nos perante a reedição de cenários que a perda de memória potencia. A descrença na democracia como eficaz sistema de liberdade política e de justiça social, e o medo perante a incerteza do amanhã, alicerçados na ideologia economicista que proclama como horizonte único o dogma da inevitabilidade, abrem espaço ao aparecimento regimes políticos musculados e de figuras autoritárias e tutelares dos totalitarismos.
Só a memória do passado nos pode preservar do erro simples que consiste em acreditar em formulações do tipo: “não há alternativa”. A atitude profiláctica certa é a desconfiança. “Deveríamos desconfiar de proclamações do género. A ‘globalização’ é uma actualização de uma intensa fé modernista na tecnologia e na gestão racional que marcaram os entusiasmos dos decénios do pós-guerra. Como estes, ela exclui implicitamente a política como um palco de escolha: os sistemas de relações económicas são, como costumavam dizer os fisiocratas do séc. XVIII, determinados pela natureza. Logo que tenham sido identificados e correctamente entendidos, resta-nos apenas viver segundo as suas leis.” (Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos) Sem memória não passamos de “mentes cativas” e de sujeitos de uma “servidão voluntária”. Acreditamos ser esta a única alternativa?

José M.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Impressões de leitura

Uma hora e meia, com curtos intervalos para fumar dois cigarros, beber um café e uns tragos de um whisky novo servido generosamente. Foi o tempo que levou a lê-lo. O título do livro é sugestivo, ajustado aos dias que correm: “Falidos!” Igualmente sugestivo é o preço – 5 euros e pico. O autor, anónimo, francês, exilado numa aldeia situada nas margens do delta do Mekong, no longínquo Vietnam, foi um “cidadão comum” e “profissional liberal”, fez parte dessa massa imensa de indivíduos que constituem a classe média europeia. Embalou, como todos nós, na ilusão criada por essa máquina de vender sonhos a crédito, que alguns classificam de capitalismo financeiro, enquanto outros designam por capitalismo selvagem. O autor apelida de “pornografia financeira” à engenharia social subjacente à lógica deste capitalismo, que visa transformar cidadãos livres em sujeitos alienados pela escravidão do consumo e do endividamento.          
Não se tratará de um livro de grande fôlego intelectual, concedo. É antes um livro escrito por alguém que presta um testemunho vívido de um trajecto de desilusão e que reflecte sobre as razões da nossa falência individual e colectiva. Para além disso, ousa propor-nos uma marcha de subversão, assente numa lógica capaz de inverter a lógica do credo consumista. Essa marcha não se queda na indignação. Vai para lá dela. Consubstancia-se numa revolta armada. As armas são quatro e “podem ser usadas de forma concertada (…): uma poupança solidária e saudável, a recusa de contrair empréstimos num contexto ignóbil, a inteligência de uma sobriedade respeitável e a previsão lúcida e pragmática do que serão os nossos recursos amanhã, em 2050, com 9 mil milhões de seres na Terra.”             
No prefácio, escrito pelo Frei Bento Domingues, o incitamento à revolta tem diferente roupagem linguística: “Façamos (…) objecção de consciência à economia financeira e procuremos promover uma economia política, aquela que põe no centro a responsabilidade do cidadão, a dignidade da pessoa humana – que nunca pode ser um meio –, a construção de um mundo mais justo, a busca do bem comum.” No princípio era o verbo. Agora é tempo de acção.
















Editor: Porto Editora
ISBN: 978-972-0-04359-7
Edição: Julho de julho de 2011
Páginas: 62

José M.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Homicídio nº. 52001

No dia 27 de Outubro de 2011, passada quinta-feira, três sicários entraram no autocarro que transportava Carlos Cuevas e crivaram-no com dezasseis balas.
Este jovem estudante de Filosofia da Universidade Nacional Autónoma do México havia-se distinguido por denunciar tanto a violência dos narcotraficantes quanto a progressiva militarização do seu país por parte do governo do presidente Calderón.
Na altura desta execução, realizada à luz do dia e em local público, estimava-se que 52 000 pessoas tivessem sido assassinadas pelos cartéis de traficantes mexicanos. A estes homicídios somaram-se, no decorrer da última semana, o de Carlos Cuevas e os de mais trinta e um seus compatriotas igualmente varridos a balazos (Excelsior, 29.10.2011).
Contrariamente ao que se ouve dizer, a violência brutal e sistemática que atravessa o México não se fixa nas regiões próximas da fronteira com os Estados Unidos, nem resulta exclusivamente de disputas entre grupos de criminosos. Pelo contrário, estende-se a todo o território e visa todos aqueles que se oponham, de alguma forma, ao crime organizado, designadamente através denúncia da corrupção e dos danos impostos, pelos traficantes, e, também, pelas autoridades, à vida colectiva. Muito recentemente, o diário espanhol El País (29.10.2011) dava notícia de 60 jornalistas mexicanos mortos e de mais 20 desaparecidos, ao longo dos últimos anos.
Em debate no XVI Congreso Internacional de Filosofía, promovido pela Asociación Filosófica do México, subordinado ao tema Filosofía: razon y violencia, Rosário, colega de Carlos Cuevas, sublinhou de forma intensa e eloquente que entre estes danos conta-se o da indiferença.
Uma vez conhecido o homicídio, um grupo de colegas percorreu a faculdade para o noticiar e propor a suspensão das aulas do dia. Porém, muitos acharam que o assassinato de um colega não era motivo para qualquer gesto, pelo que as aulas de várias cadeiras continuaram a decorrer.
No México, como em grande parte da restante América Latina, o narcotráfico destrói o Estado, corrompe os seus agentes, impõe a lei, investe em novas actividades criminosas sórdidas, liquida a economia corrente, expulsa milhões de cidadãos dos seus territórios, constitui poderosos centro de poder oculto, ameaça directamente a liberdade e a democracia, como foi reconhecido, aliás, no documento final de uma das últimas cimeiras ibero-americanas (aquela de que a comunicação social portuguesa só julgou interessante dar a notícia de que José Sócrates se tinha apresentado como o caixeiro-viajante do computador Magalhães). 
Ora, o poder alcançado pelos narcotraficantes, bem como a concorrência que estabelecem entre si, tem uma fonte precisa: a rentabilidade singular de um negócio em que o valor da mercadoria vendida representa milhares de vezes o preço pago ao produtor.
Por sua vez, esta valorização tem uma origem límpida: a proibição da produção e do acesso às drogas, por este motivo, ditas ilegais.
Hoje, o México é, no seu conjunto, uma grande Chicago dos anos 30, como as catadupas de crimes e de prisões que os noticiários e os jornais locais diariamente dão conta revelam inequivocamente.
Um pouco por todo o lado, máfias incomparavelmente poderosas medram, amedrontam e silenciam, enquanto as autoridades inauguram semanalmente novos quartéis, improvisam, nos locais mais variados, postos de controlo dos cidadãos, disseminam, por todo o lado, pórticos detectores de metais.
Porém, como nem todos se deixaram vencer pelo medo instituído ou pela indiferença face à ignomínia quotidiana, há quem – como Carlos Cuevas e Rosário - continue a dar o mais elevado testemunho de coragem, de integridade e de esperança numa sociedade em que o recurso à violência seja superado por medidas racionais e capazes.

Luís A.

Obituário

Por todos aqueles que contarão os cêntimos para chegar ao fim do mês de cara lavada.
Por todos aqueles que, derrubados por esta tempestade perfeita, não mais se erguerão.
Por todos aqueles que terão as suas infâncias mergulhadas num longo inverno.
Por todos aqueles que se manterão ou serão lançados numa velhice miserável.
Por todos aqueles que sofrerão em silêncio as agruras de uma vida mínima sem qualquer dignidade.
Por todos aqueles que só poderão contar com um destino de sangue, suor e lágrimas.
Por todos aqueles a quem o sorriso da vida é obscurecido pelas mãos dos homens.
Por todos aqueles.
Por todos.

JM

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Obrigado, Steve.

A morte de Steve Jobs motivou os mais diversos comentários. Da consternação à indiferença assistiu-se a um pouco de tudo. Mas o mais difícil de compreender foi a verborreia cega e ideológica. Que Jobs tinha um feitio irascível, que cometeu muitos erros, que era obstinado e ditatorial no que diz respeito à produção dos seus produtos, tudo isso é verdade. Mas daí a apresentá-lo como uma figura negra do capitalismo e a torná-lo culpado de todos os problemas do mundo é manifestamente excessivo.
Steve Jobs ambicionava a perfeição. Tinha uma enorme paixão pela inovação e era genial naquilo que concebia. Os produtos da Apple são surpreendentes, proporcionando aos seus utilizadores uma experiência única. Mais do que um equipamento, os utilizadores Apple compram uma experiência ímpar de funcionalidade e design que tem início no preciso momento da abertura da caixa.
Não idolatro Steve Jobs nem o considero um deus. Mas é óbvio que o mundo da tecnologia não será o mesmo sem a sua capacidade de inovação. Steve Jobs é insubstituível.

JM

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Um ministro com boas ideias e ainda por cima simpático

São por demais conhecidas as críticas de Nuno Crato em relação ao eduquês à pedagogia romântica, ideologias responsáveis pelo descaminho por onde se enredou o ensino em Portugal nos últimos 30 anos. Em Algumas ideias dominantes na educação em Portugal (2010), o mais mediático matemático da actualidade exibe as 3 ideias erradas que dominaram o ensino em Portugal, a saber: que o estudo e a escola assentam na motivação; que o propósito do ensino é a compreensão crítica das matérias; e que as vivências e o meio cultural dos estudantes devem nortear o ensino. Já no seu livro de estreia em matéria de educação, O ‘eduquês’ em discurso directo (2006), verberava estes e outros preconceitos pedagógicos, mas ia mais longe: apontava ideias e definia um caminho para aquilo “que se deve adoptar na educação”. O rumo devia ser traçado sobre dois vectores: “o ensino não precisa de reformulações drásticas nem de reviravoltas pedagógicas revolucionárias” e “é preciso centrar forças nos aspectos essenciais do ensino, ou seja, na formação de professores, no ensino das matérias básicas, na avaliação constante e na valorização do conhecimento, da disciplina e do esforço”.
Se o actual ministro da educação vai conseguir implementar, sem revoluções pedagógicas ou outras, algumas das suas ideias, eis uma questão que no futuro se verificará. Para já, o ciclo económico recessivo não lhe é favorável. Mas como ele próprio afirmou nos écrans de televisão: é preciso fazer mais e melhor com menos. Uma coisa é certa: não se fazem omeletas sem ovos. Com menos dinheiro formar mais e melhores professores e avaliar mais e melhor os docentes e os alunos, não é tarefa fácil. O problema reside na capacidade de “centrar forças”, isto é, congregar as energias de um sistema que se tem revelado entrópico. Também será decisivo estabelecer, com critério, currículos essenciais, e definir, de modo rigoroso e exigente, metas de aprendizagem. No que diz respeito “à valorização do conhecimento, da disciplina e do esforço”, não me parece que isso esteja ao alcance de qualquer equipa ministerial. Os valores de uma sociedade não se impõem por decreto. Dependem das grandes narrativas que dão sentido ao mundo, ou como afirma Neil Postman (O fim da educação, 1995): “da existência de narrativas partilhadas e da capacidade de tais narrativas nos darem uma razão inspirada para o ensino”. Todavia, a narrativa educativa dominante, escorada no pressuposto sociológico da desresponsabilização pessoal, é filha de um deus maior, o deus do consumismo, que promete a felicidade imediata e desvaloriza o conhecimento, a disciplina e o esforço. É capaz Nuno Crato afrontar esse deus maior, sem cair em desgraça? Tomara que sim, pois como dizia a minha vizinha em conversa de ocasião: trata-se de um ministro com boas ideias e ainda por cima simpático. Eu acredito em algumas delas, como esta: “A escola ainda não está a ser um garante da igualdade de oportunidades porque, em muitos casos, se desiste dos alunos mais mal preparados e porque se tem tomado, em muitos casos, a atitude de baixar os braços e não ser exigente, pensando que a exigência vai prejudicar os pobres, quando no fundo é exactamente o contrário – vai dar mais oportunidades aos pobres.” (Expresso, Única, 3/9/2011)
José M.