terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Arturinho e os alemães

O convite para almoçar partira do Arturinho, o presidente da câmara, que António conhecia de ouvir falar ao pai, recentemente falecido, e de palavras trocadas em encontros ocasionais, sempre concluídas com um cumprimento de mão acalorado e recomendações “à senhora sua mãe e ao senhor engenheiro”.
O almoço era inevitável. A câmara tomara posse administrativa de um largo talhão de uma tapada da família, destinado a uma nova avenida central na vila, para o qual estipulara um pagamento pouco mais do que simbólico. A faixa abrangia, ainda, sete parcelas  reservadas para a construção de outros tantos edifícios,  a pagar ao mesmo preço, os quais passariam a constituir, uma vez erguidos, uma muralha no acesso mais directo à propriedade.
Passados vários meses sem resposta à carta em que a família  recusou os valores adiantados, que se dispunha a trocar por dois lotes e um acesso, e iniciadas as obras, António telefonou ao presidente que, de imediato, o convidou a vir de Lisboa à vila para almoçarem.
No único restaurante recente, em sala recatada e mesa usual, a conversa saltitou e alongou-se, a propósito das recentes eleições, das novidades locais, do ano agrícola e dos méritos de conhecidos comuns. Alguns comensais abeiraram-se para dar uma palavrinha e dois saíram saboreando o gosto dos despachos favoráveis e expeditos: “fale com o senhor Robalo, da secretaria, e diga-lhe o que ficou combinado”.
O assunto da expropriação ficou para tratar em gabinete presidencial. Perante as plantas desdobradas, a conversa resumiu-se a uma declaração de princípio: a Câmara não concebia a possibilidade da existência de qualquer contencioso com a família de António, de tal modo era estimada de há muitas gerações a esta parte, pelo exemplo de rectidão e  pelo que havia feito a favor do concelho e dos conterrâneos.
Enveredar por qualquer conflito estava fora de questão, não só por razões óbvias mas igualmente por motivos pessoais, que, aliás, convergiriam. O presidente, para quem a ordem do mundo, ainda repousava no estatuto e na linhagem dos notáveis, não podia esquecer, algum dia, as palavras de consideração que seus pais e tios dedicaram  aos familiares de António.
Era certo que se tinha afastado, ainda novo, do concelho, estudado num colégio da Foz, no Porto, embora sem grande sucesso, e vivido em África sem brilho especial, mas tal não o afastara das raízes.
O percurso da sua vida era de todos sabido e, com regularidade, reavivado pelo próprio: regressado de África, o menino Arturinho, como ainda era tratado na aldeia, ou o Arturinho, para todos os efeitos no concelho, sentiu a necessidade de meter empenhos para obter uma situação na vida condigna e os conhecidos influentes em Lisboa, a quem entreposto amigo falara, convergiram para que fosse nomeado presidente da câmara. Pouco depois, casou com uma prima em segundo grau e não teve filhos. Alcançados estes dois arrumos, o novel presidente teve uma vida pacata, feita da gestão de interesses tão acomodados quanto consolidados, sacudida unicamente pela recepção de algum ministro e pela etapa local da Volta a Portugal.  O pior aconteceu quando recebeu o próprio Presidente Thomaz e de tanta vénia e beija-mão não só  caiu do palanque como viu ossos das duas breves pernas fracturados.  Mudado o regime e após alguns anos de retiro no Porto, o Arturinho não deixou de viver os momentos de glória democrática. O Partido Socialista foi buscá-lo para candidato e ganhou – como independente e de acordo com congeminações institucionais muito pessoais que tinha por apolíticas – os três sufrágios a que se apresentou.
Não era, pois, a sossegada vida corrente do município, que conhecia de cor, muito menos qualquer indemnização, que se resolveria com dois dedos de conversa ou com algumas diligências correntes, que o trazia invulgarmente preocupado e fazia sentir a necessidade de desabafar.
O problema, melindroso e sem solução à vista era a reunião com os alemães, que haviam anunciado, de surpresa, a sua chegada para breve.
            A história que conseguira tirar-lhe o sono conta-se em duas palavras: a câmara concorrera e obtivera fundos teutónicos para proceder ao saneamento e à distribuição de água, com a construção de um novo depósito, em aldeia avantajada, mas só iniciara vagamente as obras, apesar de ter recebido todas as prestações previstas no calendário de execução.
Inopinadamente, sem que estivesse previsto ou houvesse antecedentes conhecidos, os beneméritos tinham escrito a dizer que vinham, no próximo mês, verificar a boa execução e a conclusão do projecto. Como lhes explicar que tinham surgido outras prioridades, a reparação de caminhos e pontes, e que o dinheiro recebido fora utilizado para as satisfazer, sem, porém, comprometer a execução do contratado quando houvesse condições para o fazer? Por quem se tomavam esses desconhecidos para duvidar do combinado? Como os receber, se a diferença de língua e a presença de tradutores iriam impedir que se estivesse à-vontade para conversar?
Os alemães eram o problema. Já quanto à indemnização pelo terreno expropriado, rematou, quando o sr. Robalo se veio despedir, estava fora de questão qualquer desentendimento aborrecido, pelo que o melhor era António falar com a família, pois esta entenderia que as obras da nova avenida eram caras e Câmara não podia pagar mais do que propusera.
Ao atravessar o largo da feira, depois de recusar um último convite para lanchar e feitas as despedidas, ocorreu a António, ao rememorar a conversa, que o candidato social-democrata e sportinguista que fazia frente ao Arturinho, dono de uma empresa de viação, tinha no estado dos caminhos a bandeira eleitoral mais querida.
Foi, então que, por um momento e antes de começar a meditar na conversa a ter com o advogado, se interrogou: “os alemães não chegarão demasiado tarde?”

Luís A.