domingo, 27 de maio de 2012

Du temps perdu au temps retrouvé com Marcel Proust

Comecei a ler Em busca do tempo perdido. Para ser mais preciso, retomei a leitura do primeiro volume desta obra maior de Marcel Proust, Do lado de Swann, que abandonei há meia dúzia de anos quando ainda não tinha atingido a centésima página. Lembro-me então de ter pensado que, por se tratar de uma obra longa – mais de três mil páginas – a necessitar de ruminação lenta, o melhor seria guardá-la para o Verão, estação mais propícia a empreendimentos desta natureza, que exigem fôlego de maratonista. Passou o Verão e outros, ciclicamente, passou-se o tempo, e nunca mais lhe peguei. Volta e meia deparava-me com a sua lombada aprumada na estante reservada aos clássicos que ainda um dia haveria de ler, ponderando distraidamente a hipótese de cumprir esse desígnio, mas logo a enormidade da empreitada me fazia abandoná-la, adiando sine die a tarefa que adivinhava hercúlea.             
Foi o facto de ter assistido, na biblioteca do Liceu Camões, há dias, a uma aula aberta de Clássicos da Literatura, da iniciativa da professora Cristina Duarte, subordinada ao tema À la recherche du temps perdu, para a qual convidou Pedro Tamen, seu tradutor, foi esse acontecimento que me levou a retirar de novo o livro da prateleira, a abri-lo na primeira página, depois respirar fundo, e ler “Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes,…”, continuando página após página até os olhos me pedirem repouso.
O poeta falou durante quase sessenta minutos de Marcel Proust. Falou da sua vida e de alguns detalhes significativos da tradução dessa obra, que lhe consumiu três anos de uma lenta e exaltante agonia, ao ponto de, confidenciou, chegar a partilhar com as personagens confidências e inquietações que nem com os familiares partilhava. Revelou também os tormentos penados em busca da palavra exacta, as insónias que lhe tomavam conta das noites e os sonhos povoados por essas personas que entram e saem do romance sem se despedirem, voltando a reentrar um milhar ou mais de páginas adiante, sonhos que muitas vezes o conduziam à solução dos problemas prosaicos que a tradução honesta sempre coloca.     
Falou sempre com voz cadenciada, respeitando os ritmos de uma língua que aprendeu a manusear com mestria única no demorado ofício de traduzir obras alheias ou de verter em versos vozes que se transfiguram em poemas. Duas coisas disse que os ouvintes retiveram mais do quaisquer outras, pelo menos a julgar pelo que depois se comentou na sua ausência: a primeira, óbvia – que o tempo é o tema do romance; a segunda, que a leitura de uma obra como À la recherche du temps perdu transforma de tal modo o nosso ethos pessoal, que depois de se a ler, não se é o mesmo.
No final da palestra, aos aplausos oferecidos seguiram-se as perguntas. Timidamente uns, mais afoitos outros, alguns alunos interrogaram-no. Quiseram saber se o Marcel personagem se identifica com o Marcel autor, se a narrada dependência materna revela a dependência real. Perguntaram coisas do estilo, da técnica narrativa. Percebia-se que tinham preparado bem a lição. O poeta esclareceu quanto pode, solícito e benevolente. E eu então lembrei-me que seria oportuno questioná-lo acerca do Proust leitor. Sublinhei que, em se tratando de um romance pensado e escrito numa época que viu aparecer Einstein e a sua interpretação da relatividade espácio-temporal; que viu serem publicados livros cuja temática do tempo surgia explicitada nos seus títulos, designadamente de filósofos como Henri Bergson – Essais sur les données immédiates de la conscience (1889) – e Edmund Husserl – A consciência íntima do tempo (1905); que viu serem dados à estampa os romances de Virgínia Woolf e de James Joyce, romancistas de certo modo prisioneiros de uma estética narrativa da corrente de consciência; enfim, se as leituras de Proust não poderiam de algum modo elucidar-nos sobre eventuais influências que possa ter sofrido a sua construção romanesca.    
Com a humildade dos homens verdadeiramente sábios afirmou que ignorava quase tudo dessa dimensão do Proust leitor, que suspeitava contudo que teria sido um leitor atento do filósofo francês, mas que sim, que o início do séc. XX marcou a fase mais empolgante da modernidade, a qual tem na consciência do tempo um dos seus leitmotivs principais, etc. 
Na minha vida de leitor e não só, como na de muitos outros, creio, é uma mistura de acaso e de necessidade que determina os livros que se leem, de fio-a-pavio uns, aos solavancos outros, ou os livros que se abandonam como cães sarnosos à beira da estrada. Neste caso, foi um acaso feliz, caldeado com a consciência infeliz de uma necessidade há muito tempo adiada, a que me haveria de reconduzir du temps perdu au temps retrouvé com Marcel Proust.

José M.

Sem comentários:

Enviar um comentário