A palavra crise entrou, definitivamente,
do léxico corrente. Toda
a gente fala da crise … almoça crise, janta crise e dorme com a crise.
Tornou-se uma inevitabilidade. Muitas são as evidências disso, umas mais óbvias
que outras. Duas
notícias recentes evidenciam o modo como, nestes tempos, o fenómeno da crise é vivido
pelos portugueses. Sobremaneira importa realçar o sentido, necessariamente
diverso, que os seus diferentes actores lhe conferem. Para isso basta cruzar as
duas notícias, cada qual a apontar para sectores opostos da soberania
democrática e retirar desse cruzamento as justas ilações. Avancemos para a
primeira.
Pedro Passos Coelho, o representante máximo
da soberania política logo após o Presidente da República, lançou recentemente
um desafio aos desempregados deste país: encarem a crise como uma «oportunidade para mudar de vida». Para além do
mal-estar que tal afirmação provocou no seio da oposição, que logo aproveitou
para dela retirar os dividendos políticos possíveis, ela atingiu em cheio a
dignidade pessoal dos milhares de pessoas (há quem garanta que já ultrapassam o
milhão) que engrossam já as fileiras dos verdadeiros excluídos da sociedade.
Pode o primeiro-ministro apregoar que falar verdade aos portugueses é a sua verdadeira
missão como político, pretendendo com isso escudar-se na imagem de um José
Sócrates rotulado de Pinóquio e de
campeão das “inverdades”, das trapalhadas e das promessas não cumpridas. Com o
tempo de nada lhe valerá. O kairós –
o sentido da oportunidade – ensinaram-no os sofistas como Górgias, é a alma de
um político. A inoportunidade de Pedro Passos Coelho foi, neste caso, gritante,
como aliás em outras circunstâncias similares em que não só se mostrou
insensível perante o drama daqueles para quem a situação de desempregados lhes
devolve o significado de párias e de inúteis (recorde-se o episódio ainda
recente em que aconselhou os jovem a emigrar) como demonstrou que não tem
soluções para responder aos desafios mais prementes da actual política nacional.
Incinerando, deste modo, a alma de quase um milhão de compatriotas, a acreditar
nos números oficiais do desemprego, parece condenado a perder a sua.
Como interpretar
as palavras do primeiro-ministro? Que sentido político retirar delas? Independentemente
da inegável afronta que elas constituem para os visados, associar desemprego forçado
com oportunidade apenas pode significar uma coisa: a existência de uma leitura
ideológica – claramente assumida e patente na reiteração do dito, por parte do
primeiro-ministro – do infortúnio que constitui a situação de desemprego. A
ideologia ultraliberal interpreta o desemprego como uma oportunidade para o
desempregado, uma oportunidade para este mudar de vida. Que cenário vislumbra ele
com a concretização desta mudança? Tornar-se competitivo, isto é, tornar-se
empreendedor, fazendo uso do seu engenho ou da sua capacidade empresarial e
montar um negócio, criando postos de trabalho, ou então aceitar salários ao
nível dos praticados em países como a China ou a Índia. Numa frase: sucesso ou
miséria. De qualquer modo, a permanência na situação de desemprego assume, para
a ideologia neoliberal, a ideia de um fracasso pessoal de que o único culpado é
o desempregado. É por sua exclusiva responsabilidade que a mudança de vida não
se concretiza. Quanto ao Estado, este não deve interferir em questões que
apenas dizem respeito aos mercados e aos indivíduos, questões que têm que ver
com a liberdade, lavando o governo as sua mãos como Pilatos. Em razão disso,
decide abandonar os desempregados à sua sorte, que se traduz na lotaria do darwinismo
social cujo espelho é este capitalismo selvagem de que são vítimas. A par do
ferrete da “exclusão social”, mácula sem redenção num mundo que se guia pelos
imperativos do consumo – em que o valor da existência mede-se pelo valor do
consumo – ganha o desempregado um ócio forçado. Esse ócio – como afirmou Eduardo Lourenço em O Esplendor do Caos -, filho
mimado do esplendor liberal, que nos asseguraria a todos uma vida de permanente
gozo virtual, de que a droga é a grosseira antecipação, não põe termo, como nas
utopias, ao famoso “estado de necessidade”. É precisamente o contrário, a
prisão perfeita onde ninguém nos encerra, feita unicamente da nossa diferença
com aquela “humanidade-outra”, que detém – ou pensa deter – o poder de separar
os que têm direito “a trabalhar” dos que serão – ou já são – condenados ao gozo
demente do ócio obrigatório. Só que esta nova espécie de ócio se chama
desemprego.”
Passemos à segunda notícia que deu conta de
um facto curioso ocorrido no santuário de Fátima, no sábado passado. Nestes
tempos de crise, as velas vendidas e queimadas na tradicional procissão
nocturna ascendeu, em peso bruto, às dezanove toneladas, oito das quais até à
hora de almoço, quando em anos anteriores na parte da manhã eram derretidas
apenas duas toneladas. Não se tratando de um argumento de peso para fazer valer
a ideia de um acréscimo de fiéis ao catolicismo, desmentido por estudos e
relatórios que os media a propósito referiram,
somente pode significar outra coisa bem mais prosaica, a saber, que o povo
entregou nas mãos de Nossa Senhora de Fátima, isto é, à sua fé na providência
divina, a solução dos seus problemas terrenos, ao invés de a entregar nas mãos
daqueles em quem um dia terá delegado a esperança num amanhã mais risonho.
Substituir assim os políticos por Deus revela, inequivocamente, o sentido da descrença
generalizada na representatividade política.
Destas duas notícias resulta uma espécie de
fenomenologia da crise, que nos mostra, entre outras coisas, que está em causa o
problema da representação democrática. Quando os políticos, em acções e
palavras, se apartam do povo, e quando simultaneamente os cidadãos não se
reconhecem quer nas decisões quer nos discursos políticos, ou não se veem
representados pelos políticos que elegeram, o que vai dar ao mesmo, é o próprio
paradigma da democracia representativa que está em crise. As consequências
estão à vista. Em Portugal, o afluxo de gente ao Santuário de Fátima, impelida
por promessas em que apenas a sua fé lhes confere algum crédito; noutros países
da Europa, a emergência de partidos políticos de configuração neonazi, que
rompem com a matriz democrática decadente que lhes deu alento e razão de
existir. Por que caminhos nos conduzirão amanhã os nossos passos hesitantes?
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